A Equipa da Biblioteca
Escolar deseja, a toda a comunidade, uma Boa Páscoa, serena e com saúde!
Deixa ainda um
belíssimo poema de Vasco Graça Moura, em que ele revisita a Páscoa da sua
infância, em tudo muito semelhante àquela que também foi a nossa...
domingo de páscoa
no domingo de páscoa, vinha o compasso
a descer a rua íngreme
do montebelo. primeiro, ouvia-se, entre longe e
perto, uma campainha e alguém ia à janela
para exclamar: “— já vem ao cimo da rua!”
começava-se então a espalhar
pétalas e verdura em profusão
no degrau da entrada. a impaciência
aumentava porque havia vizinhos
muitíssimo católicos e cheios de indulgências
e o compasso tinha de ir primeiro às casas deles
que eram antes da nossa. levava imenso tempo, até que,
por fim, a campainha tilintava festiva na soleira,
sentia-se o roçar das opas de seda, o ranger do calçado novo,
e viam-se cabeças num tropel com muita brilhantina,
rodeando o padre, sorridente, compenetrado,
a avançar direito aos nossos penteados,
risca ao lado os rapazes, tranças e laçarotes as manas,
rescendendo todos a esmero e sabonete
nas roupas de ir à missa.
a minha mãe chegava entretanto, depois
de ter ido uma vez mais
ver se na mesa a toalha estava bem alisada
se o pão-de-ló, as amêndoas e o
vinho velho da praxe estavam compatíveis.
o meu pai metia uma nota dobrada num sobrescrito.
o padre entrava, dizendo: “— aleluia, aleluia!”
aspergia água benta, afagava-nos a cabeça,
e, logo atrás, avançava o sacristão, acolitando,
ou quem lhe fizesse as vezes, e dava a imagem a beijar.
por causa dos micróbios, limpava os pés com um lenço,
de cada vez que mudava de boca.
mesmo ajoelhados pensávamos nos micróbios
que ficavam na cambraia
e fazia alguma impressão, mas deus era grande,
a ressurreição exaltante, e o vinho fino lá de casa
um rodo do melhor. corriam as doçarias,
o sobrescrito deslizava discretamente no saco das esmolas,
e a campainha estremecia, a alvoraçar-se
outra vez fora da porta, anunciando-se a outros lares.
ninguém chegava a sentar-se, mas o padre fazia alguma cerimónia
e detinha-se a conversar um bocadinho,
com a maior das civilidades canónicas.
durante a tarde, o badalinho argentino
da campainha prosseguia, em tlintlins,
ora mais perto, ora mais longe,
até o timbre esmorecer de todo, a sumir-se com o casario
na noite. as flores da soleira iam murchando devagar
e dizia-se que os do compasso regressavam
a casa, quantos deles bem bebidos,
com os pés a doerem de verdade.
não me valeu de nada:
sou um descrente empedernido.
mas lá que era bonito, tocante, familiar,
colorido, matinal e sempre esperado,
lá isso era,
e sabe ainda a risos soalheiros
e aos perfumes leves de domingo
em abril, e as amêndoas, doces de ovos,
e aos pais ao pé de nós, e a vinho fino.
Vasco Graça Moura, Poesia 1997/2000, Quetzal Editores
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